A segunda ordem do discurso
Sobre isso não se pode escrever coisa alguma sem antes se fazer de tolo. São formas de laço social as formas de discurso [Lacan]. Seu fracasso seria o fracasso de um modo de fazer laço. Essas formas, com efeito, não se encontram hoje propriamente fracassadas, mas soltas no mundo, selvagens, sem moldura, sem envelopes de codificação. Pensamento do exterior [Foucault]. Saímos da era da simulação para a era da falsificação em laço infinito. Todos as estruturas discursivas convergem para o seu falso. Do que eram feitos esses envelopes (confinamentos, campos, territórios existenciais)? Daquilo que chamamos símbolos. Este é o mais próximo que tem o humano de ter propriamente um corpo, que obviamente não é um corpo individual, muito menos grupal, e sim coletivo, comum. Nomes, brasões, bandeiras, monumentos, selos, moedas, medalhas, diplomas, títulos, palavras, todas essas coisas são imagens de símbolos. Elas até persistem, mas os símbolos não são as suas imagens. É o caso de evitar o diagnóstico tristonho, genérico e ineficaz do mal-estar (Unbehagen). Que não haja o que fazer quanto a isso deveria precisar ser demonstrado. Para falar daquilo que se perdeu, é preciso, e possível, retomar a questão do discurso, em outros termos, ou seja, como mitografia viva e aberta.
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1. A questão começa com a distinção entre ser e saber, no discurso do mestre. O significante mestre, aquele-que-é, o Nome, continuamente remete àquele-que-sabe/goza, e nessa remissão está o sujeito, que no discurso do mestre está oculto, porque essa distinção entre ser e gozar não pode ser su/posta. O gozo produz, entretanto, um excesso, um excedente, justamente porque a produção se dá em uma cadeia (significante) que não cessa de remeter a um saber em movimento. Esse excedente precisa ser reapropriado pelo ser, no processo da ocultação do sujeito. Esse discurso está solto na mídia dos espaços públicos em rede, que faz a transição da palavra de ordem para a palavra de comando. Sua personagem é o influencer.
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2. Na translação seguinte do diagrama, o saber/gozo/práxis passa a ser aquilo que põe as coisas em movimento (enquanto ele mesmo fica parado), enquanto o ser está oculto. O discurso da universidade não pode remeter ao ser, que preside o movimento em que o saber vai se dirigir ao gozo, vai se propor a compreendê-lo, “matriculá-lo”. O ser/autor estará então oculto enquanto tal na transmissão do saber ao seu destinatário, que não é mais quem produz, mas quem consome. O sujeito se converte naquilo que ocuparia a posição original do excedente. O professor, assim, se confirma pela sua excentricidade, da qual o aluno sempre fracassa em reconhecer-se como objeto, sempre retornando, por isso mesmo, ao saber. O discurso da universidade está hoje inteiramente na rua, extramuros, se faz a distância, especialmente. É aquele que se coloca no lugar de porta-voz da ciência, ou seja, é a mídia de massas, em novo papel, incorporado pela jornalista.
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3. O discurso que está no avesso do mestre, o do analista, é o outro discurso da impossibilidade, que hoje se encontra solto na figura do trans, ou melhor, na do “+”, em “LGBTQ+”.
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4. No avesso da universidade está o discurso da histérica, o outro discurso da impotência, que se encontra hoje plasmado na figura solta do governante que governa pelos espaços em rede, o que inclui o governante de si mesmo, e o seu apóstolo, o jovem anarcocapitalista. A histérica é aquela que vê sem ver, que com aquele com quem fala apenas contracena, para uma platéia suposta, esta sim, que realmente pode ver. O que age é o sintoma, a busca de uma maneira de viver está em evidência. Pode parecer que fazer desejar é a mais antiga profissão, portanto talvez a mais “segura”, e que a mulher-objeto será a última a estar a estar ainda a salvo do desemprego, mas também esta atividade se “automatiza”, e se dissocia em agentes especializados. Talvez tenha começado por esse discurso a descomposição de todos eles.
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A narrativa humana começa então com o "louco", com a nômada perdida, errada. O louco é o primeiro humano, e é o seu princípio. Poderia não ter dado certo, como é sempre com aquilo que está vivo. Na verdade certamente deu errado muitas vezes, antes de dar certo, e isso deve ter acontecido de várias maneiras diferentes. O xamã é o resíduo dessa passagem, assim como, entre os bárbaros, é o imperador, ou o sábio. Entre os civilizados, todo estranho, e também (tristemente) todo doente dos nervos. Aí aparece o ponto de estofo, como numa mutação fortuita, e a linguagem se possibilita, surge um "delírio em cadeia", que vem a ser por isso significante, e o gozo se encaixa, se faz possível na ausência dos instintos. Em algum momento, a ereção parou de ser consequência dos feromônios. Os feromônios pararam de ser produzidos, porque agora o mecanismo da cópula passa por um excitação intempestiva, que vem da escuta, que enlaça a passagem do ser ao saber, por onde caminha o sujeito. A questão nos parece ser, desde então, a da suficiência do saber, até que ponto ela existe nas variações do discurso, e agora até que ponto ela pode deixar de existir, por exemplo numa escrita dinâmica, numa selvageria da escrita. No entanto, dissolvidos os envoltórios, um novo impossível, fazer programas de computador? Antes disso: que discurso pode falar aí? Não necessariamente algum: eis que desde o princípio a inteligência artificial, a do alienígena, está colocada. E a xenofobia vem vindo junto desde então, a fobia de tudo o que é estranho. Mas se fosse possível um saber sobre a hiperescrita, como seria esse saber? É a isso que se dedica o que resta do discurso da universidade nesse caso, que é o saber puramente matemático, ou, nesse caso, o que seria uma ciência da computação.
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Mas esse acabará por ser um saber invertido, se colocado em ação. Um saber se deixar conhecer pela máquina, e com isso saber conhecê-la o suficiente, e nunca mais que isso. Para fazê-la funcionar de acordo com um critério que não se situa, nem nela, nem exatamente fora dela, e certamente não em um saber consolidado. Parece um discurso isso, não? Interessante que isso vale para todo programa suficientemente selvagem, não é preciso que o suponhamos “inteligente”. Faz até pensar que essa ideia de “inteligência” das máquinas é inessencial para esse discurso que estamos supondo que existe. O essencial é estarmos diante de algo que é alheio. Então a escrita de um arcabouço, de uma linguagem, de um protocolo, de uma arquitetura, é um diálogo, propriamente, porque essa escrita vai sendo feita antes de saber se ela é sequer possível. É possível, em tese, mas na prática… é uma outra história. E é impossível de saber, antes, se será possível na prática, porque não existe relação causal entre o texto e o seu efeito. Existe o texto, e o efeito, mas a relação causal não pertence ao saber capaz de produzir o texto, nem àquele capaz de avaliar o efeito. Esses dois saberes só podem conjugar-se a partir da intervenção de um signo externo aos dois, porque a unificação entre eles está barrada. Esse signo externo faz parte de uma cadeia, a cadeia dos programas que funcionam in the wild. Parece mesmo uma operação discursiva essa coisa, mas uma operação discursiva que ocorre a céu aberto. E parece também que em todos os lugares onde havia um sujeito barrado, ocorre a tradução desse barramento em um outro, que é da ordem da produção de matéria-mole, de software. Quer dizer, o “não poder ser e saber”, o “não poder ensinar o que se deve aprender”, o “não poder fazer desejar aquilo que se tem”, e o “não poder saber o que cura enquanto se cura”, todas essas coisas vêm sendo rebatidas sobre “não poder escrever o programa e saber o que vai acontecer”.
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“Se fosse possível saber o que um programa vai fazer antes de executá-lo…”: é impossível não supô-lo, entretanto. Como no caso das outras impossibilidades/impotências, só que essas agora se transformaram em interdições absolutas. Se antes era impossível educar, amar, governar, curar, agora é proibido. Agora só se pode escrever programas, e fazê-los funcionar. Para poder parar com isso, o que é preciso? De que natureza seria a intervenção? Que acontecimento precipitaria essa parada? Não seria uma impossibilidade técnica, nem uma sabotagem. Não seria um gesto político, micro ou macro. Não seria a alusão a um paradoxo lógico. Nem um grito, ou uma performance.
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O que poderia ser esse evento? Algo que pudesse interromper a extinção do discurso, a cessação do desejo, com os materiais de que se dispõe. Caminhando para a frente.
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Como se sabe que amar é impossível? As músicas ensinam, os romances, os filmes. Ensinam? Se aprende isso? Quando Romeu e Julieta morrem, como é que isso faz sentido? Como é que se pode ter acesso a esse espírito trágico? Alas, não se pode encenar a tragédia da tecnologia. Só se pode ficar choramingando líquidos pelos cantos, como Virilio, Bauman e Han.
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Se isso fosse um código de programa, seria lido em referência a um modelo de computação imaginário. O programa em execução será elemento de um processo de significação. Pode parecer que a eficácia do programa depende da redução do processo de significação ao modelo de computação em que ele foi composto, mas essa possível redução seria apenas um recuo relativo. Imediatamente aparecerá outro processo de significação, também exterior, igualmente indomado, como se estivéssemos fechando uma matrioshka sobre outra.
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A eficácia do programa não existe, objetivamente. O campo fenomênico comum entre o programa e o seu funcionamento é reticular, hiperfragmentado. Como as ciências humanas, a empreitada da escrita de programas só pode ter como base científica uma historiografia, ou uma mitografia.
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Do que se trata, é de operar num campo do símbolo que é diferencial em segunda ordem.
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S1, S2, a, $, nenhuma dessas coisas tem imagem, mas especialmente S1, que coincide com a origem dessa ausência de imagem. O engendramento da visão humana é essa perda de eficácia, esse véu do visível. S1 está no lugar imperativo do que estaria visível, se fôssemos animais, se estivéssemos como a água na água [Bataille]. Ainda assim pode haver, para os animais, cadeia significante, assim como há memória, e inconsciente, mas para contar como animal, o corpo precisa poder funcionar mesmo aos pedaços. S2 entra então com o tempo, e o modo de tornar visíveis novamente as coisas, e imaginável o saber das coisas por alguém, saber pela palavra, som que se separa dos outros sons. Isso que distingue a palavra dos outros sons, ou mesmo do puro som, é S2. De início, a é justamente o próprio sujeito, ou um proto-sujeito, que surge como um excesso fantasmagórico, espasmo de ação, verdade fora do lugar. Somente quando a diferença entre S1 e S2 se estrutura como cadeia, e estrangula o instinto, entra em cena o desejo. O a se situa no corpo próprio, que aparece, e fora aparece um $, na posição que vai ser depois a do outro. Isso coincide com o primeiro ritual da palavra, com o primeiro fort-da, o primeiro jogo de linguagem coletivo, comum, em que $ reincide, reincide, reincide. Fora.
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O que se pode dizer é que essas peças podem formar todo tipo de máquina [Guattari], não necessariamente uma só, não apenas estrutura. Está-se a ponto de ver um pouco do que essa álgebra é capaz.
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Em meio a uma matemática é que se está. Esse é o caminho da anti-teoria.
[Técnicas meditativas e/ou terapêuticas não desafiam a estrutura do discurso, ou o fazem de maneira acidental. A psicanálise é uma operação oriunda da própria estrutura, da sua própria potência, mas não é a soma da potência do discurso, muito menos daquilo que se situa do lado de fora.]
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