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Anti-mônadas

Nós não somos classe, nós não somos coletivo. Nós não somos clã, tribo ou família. Nós não somos malta, nem massa. Nós não somos indivíduos. Nós não somos grupo, nem corpo, anel, ou campo. Nós não somos raça, ou etnia. Nós não somos espécie, nem gênero. Nós não somos manada, horda, ou laia. Nós não somos tendência, não temos propensão. Nós não somos cambada, nem bando. Nós não somos legião. Nós não somos multidão. Nós não somos anônimos. Nós não somos clube, nem sociedade. Nós não somos vara, paróquia, região. Nós não somos igreja. Nós não somos almas. Nós não somos egos, ainda menos superegos. Não somos sistema, nem população. Nós não somos país, nem nação. Nós não somos time. Nós não somos deuses. Não somos mortais, ou imortais. Não somos eternos, nem efêmeros. Nós não somos mortos-vivos. Nós não somos colônia. Nós não somos um, nem dois, nem dez mil. Nós não somos zero. Nós não somos nem nada, nem tudo, nem parte, nem pouco, nem muito. Nem muitos. Nem algo. Nós não estamos em minoria. Nós não tomaremos conta. Nós não somos a natureza. Nós não estamos por dentro, por fora, ou entre, mas reverso. Nós não somos milícia. Nós não somos domínio. Nós não temos elemento neutro. Nós não somos monóides.

 

Nós não somos mônadas.

Entre as corporeidades vivas que se encontram há, na medida da sua capacidade de implicar-se – e os dispositivos que operam a distância são diferentes nessa capacidade, hormonais, neuronais e significantes, por exemplo – a constituição de unidades somato-perceptivas mais ou menos efêmeras. Essas unidades somato-perceptivas heterogêneas são as unidades próprias do vivo, funcionalmente (ou processualmente) falando. Aquilo a que se atribui uma identidade imaginária permanente – e transcendente, possivelmente genérica – dos corpos, aquilo que se toma como manifesto, já é efeito de articulações do plano da significação, e não tem, portanto, substância. O Animal não comete esse equívoco. O Animal – que aí inclui todo o espectro do vivo, que na medida em que faz tecido dinâmico, coletivo, se anima – está no mundo como a água na água [Bataille]. As unidades somato-perceptivas são elas mesmas incorpóreas. As chamaríamos anti-mônadas, ou nômadas.

É o caso de ir além disso, entretanto. Um exemplo: vai alguém andando pela calçada, e um gato de rua está logo adiante, num lugar por onde deve passar se continuar em linha reta. O gato lhe aparece como concepção, é assim que o pode entender. A consciência faz uma imagem estratégica do encontro, enquanto outros pensamentos a trespassam. Não há mais linha reta. Decide adotar a conduta menos ameaçadora (desviar o olhar; caminhar sem hesitação, mas suavemente; não produzir ruído inquietante). O mais importante, no entanto, é que o gato poderia, apesar da diferença de tamanho, atacar-lhe, e sair relativamente incólume. Poderia, mas não o fará. Isso dará a entender que o gato não pode realmente aquilo que se possa entender que ele pode, e que o poder do gato não está realmente nele, quer dizer, não se situa psiquicamente nele. O poder do gato já está em relação, ele já pertence ao comum. O poder real do gato já implica a animalidade que também implica o passante, e também a animalidade da própria cena, e da terra. O gato nem mesmo é água na água, o gato e o humano, no campo da ação, já não são gato e humano. O Animal precede a eventual discrepância entre essas duas instâncias, cuja realidade depende da fala, no âmbito da qual o gato, aí sim, ainda se constitui por si, mesmo que não fale.

As anti-mônadas não se relacionam, elas coexistem. A única resultante possível da sua coexistência, a única possibilidade de contato se situa para aquém de qualquer mediação possível. A única conexão que o passante – em seu processo narcísico – tem com a sua animalidade, por ocasião do contato com o gato, também passante, vem de um real para o qual não há correspondência possível no sistema de signos no qual ele e o gato não são estão amalgamados. Como essas intrusões podem ser ressignificadas é uma questão a ser tratada. Seria o caso, talvez, de pensar que as anti-mônadas têm uma espécie de membrana, ou uma interface (Schnittstelle? Kontaktschranke? [Freud, Projeto de 1895]). Mas isso não implica que seja possível uma composição dessas anti-mônadas. Não há metalinguagem [Lacan]. E na linguagem também estamos amalgamados em anti-mônadas, também já não somos indivíduos (a não ser em um só-depois, tarde demais). O que acontece com os significantes, o que têm de tão especial? Não muito: todos os sistemas de signos se fazem de anti-mônadas. Cada teoria semântica que hospedar o humano coincidirá com o seu substrato mítico, e com o  seu corpo coletivo-comum: anti-mônada. Cada conjunto de conexões a distância que produz relações de recorrência – ciclos – cujo funcionamento se repete no tempo, corresponde uma composição somato-perceptiva. Que essas repetições façam imagem para outras repetições de “maior ordem”, não as confina a estas, não as pode subordinar. O que há de particular nos sistemas de signos que são imagens deve também poder ser situado por inteiro no âmbito de uma articulação com o real. Esse seria um modelo para o que se chama identificação, e para a constatação de que as identidades são epifenômenos: faz-lhes falta sempre uma tecnologia para se sustentem. Tecnologias monádicas, as chamaríamos, porque tomam alguma noção de identidade, de elemento neutro – castrado, castrável – como parte da sua definição.

O amor não seria surpreendente, se se tomasse a identidade pelo seu mísero valor de face. É natural que todo tipo de amálgama corpóreo aconteça, e que siga acontecendo, amorosos inclusive. Imaginar que os amores se sustentem como resultado de uma engenharia das identidades só pode ser um drama. Talvez a questão central daquilo que se chama feminismo: sair desse drama, recuperar a capacidade de amar, mas agora, aqui, com os materiais que se tem, não um dia. E também livrar-se do amor, descobrir que a sua apologia e o seu totalitarismo identitário fabricam solidão em escala industrial. É pela codificação circulante do amor que o capitalismo captura as mulheres.

As identificações se dão ainda, poderíamos pensar em uma “mecânica vetorial” das identificações. Isso se imbrica com o caminhar das anti-mônadas animais, inclusive. O que se pode fazer disso são ritornelos de não-identidade, ao modo das práticas meditativas, por exemplo, ou ao modo das formas nomádicas, que não se repetem, ou ainda ao modo “retificador de nomes” da ordem sem palavra chinesa, por exemplo. Exemplos do que se pode fazer da subjetividade sem mito de autorreferência.

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