Anti-pirâmides
O real se expressa, no quadro da subjetividade, na sequência do nascer e morrer. Esse é o modelo monádico da cadeia significante, a linhagem. A sucessão da morte e nascimento do que é ideia (figura, imagem). Do modo como as coisas se reencarnam: por aí é que algo de real pode animar a língua. Por outra: a morte humana, e o nascimento, são exatamente aquilo que não pode ser natural. O que se faz para além disso é decalque, ou desdobramento. A morte e o nascimento podem ser sublimados, mas sem eles, como seria possível falar? Como seria possível começar a falar, senão em nome de quem já se foi, ou (ainda) não fala? O corpo vivo não se basta, essa é a sua essência. O corpo humano não se basta em nenhum momento, e de forma superlativa. Eis o que determina o desejo. Esse não se bastar é algo cuja resolução cessaria a vida do corpo. Existe a interpretação de que o desejo é a vontade de gozar, interpretação essa que se possibilita pelo uso técnico de um termo de uso comum, e que é nesse uso já sobrecarregado. O desejo, estritamente falando, é o que torna o encontro algo que precede logicamente qualquer possível identidade. E, portanto, à cessação da vida amada (e à sua irrupção) em algum lugar, como imagem, vai corresponder a uma irresolução em outro lugar. Nesse outro lugar, a fala do que morreu ainda necessariamente fala, e a fala daquele que vai nascer já se ouve. É por isso que toda fala, que realmente fala, é fazer de si boneco de ventríloquo. A morte não pode ser tão somente a morte do indivíduo, a morte individual não existe. Supor que a morte é individual é perder-se da morte. O espírito do corpo não existe, ele precisou ser inventado.
Territorializar-se é esquecer disso tudo, em maior ou menor medida, é exilar-se da animalidade, e enclausurar-se. As clausuras tradicionais da clareira, da aldeia ou da gleba rural são contenções imanentes. Estar enclausurado é fundir-se ao território. Já o confinamento clássico é abstrato e totalitário, monádico, na medida em que extingue o comum como "fora", e introduz à existência o espaço neutro, público. As instituições, entre as quais a polícia é o modelo, se encarregam de garantir que o espaço público não seja passível de apropriação. A polícia não está ocupada em produzir, mas em esvaziar os lugares públicos, que passam a ser lugares de passagem, para que a produção ocorra somente nos confinamentos. Eis que permite fazer-se cercar dos arcobotantes da cultura, que acabaram indo na direção de uma tecnologia do eu. Há algo que persistia na vida tão só territorializada, deslocamentos genuínos das sequências do nascer e do morrer, que se produziam, ela ainda se nutria da riqueza das nômadas. No trato do animal do qual se alimentará o homem, por exemplo, na sua rostidade. Na transmissão da terra, outro exemplo. Ela ainda era presidida pelo Céu, ou pelo Sol, enfim, essas coisas adquiriam patrocínio, todos os atos acabavam requerendo um intercessor, por que são símiles, não têm a potência da sequência original do nascer e do morrer.
O que restou de tudo isso? O trabalho, nos restou, talvez. Ou nem isso. De todo modo, o temos como vínculo fatal que ainda resta, a manifestação do necessário que sobrou. Como consegue o trabalho ocupar esse lugar? Não é por que por ele se dá de comer a si mesmo, mas por que ele dá de comer ao outro, ao que é elo da linhagem. Ou, por que o trabalho ainda é como pôr a mão na terra, tirar dela todas as coisas – em especial a carne humana, que a terra simboliza – e eventualmente devolvê-las à terra. Quer dizer, por que o trabalho ainda tem algo de nascer e morrer. Assim vinha sendo, ao menos. De que modo isso se quebra, recentemente, e se emenda? De início, se pôde atribuir ao trabalho um valor icônico. Trabalhar por trabalhar. Quanto do pensamento utópico não foi devotado aos modos pelos quais isso deveria funcionar... E eis que logo se deu a ideia de não ser mais assim, de nenhum modo. Há agora uma ideia de que o trabalho pertence ao campo dos movimentos, nem um pouco mais ao das ações. Por exemplo, pode-se pensar que o trabalho se justifica exclusivamente pela remuneração, ou talvez por alguma qualidade estética, tão somente imaginária. O trabalho se tornou perfunctório, vazio, ou então apenas uma espreita, uma espera. Isso porque ele descolou-se da manufatura, da gênese da mercadoria, hoje inteiramente a cargo das máquinas. Máquinas às quais tratamos como escravos, o que rebaixa os seus artesãos à posição de senhores, ou de competidores pela servidão. O trabalho residual se restringe à concepção das máquinas, às sua regência, e à sua manutenção. Ele não tem mais ligação nenhuma com qualquer ciclo de vida e morte, e também perdeu a possibilidade da auto-referência. A mais-valia recentemente passou a extrair-se do consumidor, como usuário, privado da possibilidade cidadã, acorrentado a dívidas de todos os tipos, dependente do investimento, do uso não destrutivo (não mais consumo, portanto) para permanecer em relação. O uso é a única comprovação possível da sua potência. A capacidade produtiva não produz evidências, não se dá a ver. Antiprodução é o nome do jogo. O trabalho volta a ser fusão de corpos. Não existe um mercado, ou uma oikonomia geral, para aquilo que se dá em qualidade e não em quantidade, àquilo que se denomina por semelhança, ou em gênero. Por aí é que se retornará a alguma imanência.
Então, impelido por que força se trabalha? Trabalha-se por emulação do princípio que presidia a transmissão da linhagem, o laço. Veja-se: que as pessoas venham umas das outras não está dado. Para que isso aconteça, é necessário que algo circule entre elas. Que a sua presença seja objeto de uma circulação. Foi preciso que a necessidade imediata (fome, proteção, cura) fosse inteiramente convertida em uma espécie de instinto estratégico, ou numa "estratégia do instinto". Trabalha-se na medida em que o trabalho é feito de performances vinculadas a um conjunto de estratégias, estas sim circulantes, estas sim necessárias. Por elas se vive. O que aconteceu, mais recentemente, é que a expansão dos mercados produziu um regime de circulação centrada nos processos de produção, que se tornou, por isso, produção do mesmo, pelo mesmo. O capitalismo unificado não será ao final, entretanto, um regime de equivalências, um regime monetário. No centro do mundo, essa ideia de circulação totalitária já se perdeu. As estratégias econômicas racionais se descolaram dos corpos, e o que aparece no seu lugar é um fervor burocrático desnudo, descolado de qualquer visão de futuro. É o que sobrou da capacidade de representar a si mesma da sociedade disciplinar. É o que de visão ainda tem o mundo dos controles: a visão da ordem icônica, sem palavra (de ordem). Não é de uma tentativa de reterritorialização violenta que se trata. Não é uma recuperação da voz das massas que acontece, e sim uma expansão em rede dos espaços que se situam fora de qualquer lei civilizada. Com efeito, um trabalhador territorializado só pode trabalhar na construção das pirâmides do seu tempo. Uma exceção seriam os quadros sintomáticos capazes de produzir “por acidente”, aos quais situamos no que se denomina, um tanto fantasmagoricamente, “espectro do autismo”. Ali talvez estejam sendo colocadas as inteligências computacionais.
Depois de alguns séculos de industrialização do nascer e do viver, do morrer e do matar, as mortes vãs e as violações se reduziram muitíssimo, mas parece que são muito mais sentidas. Há toda uma economia dos anúncios de mortes vãs, e os assassinos vãos que restaram parecem atribuir-se a missão de alimentá-la, isso lhes dá uma pirâmide provisória (!) para construir. Nem mesmo um trabalho de Sísifo fazem, estes a quem se chama terroristas. O que falta às mortes de hoje? Mais assustador do que elas, propriamente, é a suspeita de que já não estavam vivas as vítimas, de que já não poderiam ser efetivamente mortas. Parece estar a cargo de um certo fascismo a pretensão de autorizar novamente o amor à morte, de soltá-lo novamente sobre o mundo, fazer com que algo de uma certa natureza retorne à vida. O começo do seu argumento diz que se exclusão de fato é um dado, porque não torná-la novamente de direito – em novas bases conceituais, evidentemente. Isso nos traria a paz, dizem: bem supremo. Mesmo que fosse esse o caso, como poderia ser bem sucedido o projeto? A morte do corpo não nomeado não sacia. O trabalho genérico não retornará. E o que se interpreta como avanço de uma visão hiperconcorrencial, radicalmente individualista, parece reclamar para si um mundo liso e sem privilégios, mas oculta o retorno de uma sociedade de afecções, numa retomada plena do regime de apreensão dos corpos pelo uso, pelas composições heterogêneas, e não pelas equivalências, pela capacidade fazer de circular o mesmo.
O que fazem as desidentidades contra-genéricas, nesse caso, é lutar pelo modo como essa recodificação contra-significante se faria, como se fosse possível uma espécie de nova ordem genérica, para a qual talvez se tornasse necessária uma “Organização dos Gêneros Unidos”. Todos desejam a segregação, até mesmo os justos, a mistura é o sinal do sinistro. Todos lutam para poder continuar dizendo “nós”. E a língua segue seu processo de formalização. Explicando: o debate que se dá em torno dos gêneros às vezes pode dar a entender que a opressão se situa do lado das interdições, e que a luta consiste em afirmar as possibilidades. Um olhar mais cuidadoso revela que a opressão se dá pela codificação das interdições, e que a luta se propõe na intenção de uma descodificação, de uma informalização, de modo que essas interdições possam ser justamente revitalizadas, não extintas. O que querem as feministas obviamente não é um nivelamento dos gêneros, e sim que haja deveres diferentes, mas que esses deveres diferentes não emanem de uma lógica da semelhança. A divisão do trabalho doméstico, por exemplo, não implica que os homens e as mulheres façam literalmente as mesmas coisas, mas que o fazer de cada um seja não-dito, e, por isso mesmo, realmente feito. As mulheres não querem ser homens, não porque se trate de um objetivo inalcançável, mas porque seria algo estapafúrdio. Jamais dirão positivamente que diferenças de dever-ser entre homens e mulheres serão essas, sempre negarão no discurso direto que essas diferenças de potência existem, mesmo que no fim das contas a potência venha a estar do seu lado, afinal de contas. Desejam, sim, que esses deveres sejam decididos no varejo, no nível dos corpos, dos interditos não ditos, não por astúcia ou covardia, justamente ao contrário: é que só aí, nesse nível do que não é dito, é que as coisas realmente acontecem. É só aí que se poderá, talvez um dia, até mesmo fazer o não-binário acontecer. Do mesmo modo, o que querem os afros (os negros da América, aqueles a quem se chamava crioulos – e todos os americanos são crioulos, essa é a condição de ser americano) não é que o mundo branco os acolha como semelhantes, mas que as diferenças sejam negociadas em miúdo, no microscópico. Os afros não querem ser brancos, mesmo que seja dito que é vantajoso, simplesmente porque é estapafúrdio. O que querem os "+" (de LGBT+) não é que se equalizem todos os modos de amar. Os modos de amar são diferentes, mas o que propõem, sem dizer, é que essas diferenças não sejam detalhadas num mapa comum, mas que sejam objeto de intercessões silenciosas, que justamente preservem a sua virtude.
É agora uma estranha e monstruosa luta não ser obrigado a falar, a textar, a escrever, sobre si ou sobre qualquer coisa. Será sempre difícil para um ser humano "domesticado" (moralizado [Nietzsche, Genealogia da Moral]) entender o grau de estranhamento causado a um humano pelo contato com a potência de um outro humano – o que inclui aquilo que está fora, dentro, ou entre – em situação de origem, em arché. Conseguir imaginar com intensidade suficiente essa cena original seria o suficiente para explicar a emergência recorrente e espontânea do elemento religioso, e também para explicar por que essa emergência falha nos tempos em que essa experiência primitiva parece estar esquecida, ou "resolvida".
Haverá novas nações? Novas massas? Há hiper-maltas, mas não novas massas. Essas novas fronteiras são intraçáveis. Por outro caminho, seria possível uma “greve geral” do não-ser? De todo modo, acontece que a natureza está agora definitivamente excluída do papel de juiz das diferenças, por que o que está em jogo não é a possibilidade de agir do corpo (inteligência, força, virtude), mas a capacidade de ser destino da ação, de ter seu corpo utilidade, uso. Imensa ironia do retorno aos regimes de servidão. É por isso que a defesa das pessoas com deficiência é hoje tão presciente e vigorosa. É por isso que a voz dos povos de ex-escravos e ex-colonizados se faz ouvir. E é por isso que a questão feminina é tão urgente, nela está contida mais inteiramente a questão da servidão, por ela se enuncia mais claramente uma visão existencial da civilização que havia antes da civilização. Ao mesmo tempo, é por isso que a experiência do conforto material se converteu em escândalo, como o gozo infinito de uma moeda sem lastro, e até a prevalência da paz se tornou uma indecência.
Não existe uma tecnologia do coletivo, que possa ser justaposta à tecnologia do indivíduo. Esta precisaria ser suprimida antes. O mito individual [Lacan] se encontra esgarçado: os super-heróis são o que restou da cultura de massas. Os poderes mágicos de um super-herói aparecem no lugar das relações, eles são uma imagem das relações como coisas mortais, coisas às quais é preciso sobreviver, a qualquer custo. É certo que as relações não existem, mas seria necessário esquecer do afã de produzí-las. Para isso concorrem, violentamente, as tecnologias que não são mais de informação, mas de afecção, e então controle. Qual é o efeito da justaposição de um “#” a uma palavra de ordem? É um sinal de conversão em número, de algebrização. Os novos memes são palavras de ordem? As criptomoedas são moedas? Se a sua graça é nada terem de risco, não podem ser. Se tiverem algo que por enquanto se oculta, poderão ser. Os gadgets também querem morrer… Querem tornar-se tecido. Desde o início foi assim.
Como se pode ser um homem, agora? Como se pode não depender da subjugação – secretamente consentida – de um negativo como garantia? Como se pode extrair da própria angústia de castração um valor positivo, senão por milagre? Como se pode ser amoroso na crueldade sem ser não-todo? Até que ponto a coragem masculina será tão somente contrafóbica? Teria ainda algum valor esse significante normativo, lugar de enganchar gozos heterogêneos? Será finalmente possível devir-(h)omem? À condição de que ninguém mais possa ser oficial emissor de garantias... quem sabe.
O alvo do humor costuma ser tudo aquilo que é símbolo de poder, e agora eles (e elas), se voltam diretamente para o superego, sem intermediação. Ri-se de tudo o que é forma de abnegação. Cada contra-gênero é o nome de uma dor, e dá nome a uma dor. A dor de existir é o veículo desse tipo de desidentificação, mas existe agora a dor de não existir. É em busca daqueles junto aos quais se pode fazer o canto da própria dor que se colocam os homens. Os homens Guayaki [Clastres, “O Arco e o Cesto”] cantam seu canto individual, mas cantam juntos. Os homens Guayaki não são emissores de garantias permanentes, eles não as produzem em excesso. As mulheres Guayaki cantam o seu canto em comum, mas não é um canto de dor comum. Talvez para as mulheres selvagens não seja ainda possível cantar a dor junto. As línguas têm o seu jeito de desenhar os mapas dos gêneros que nomeiam, de acordo com as dores a que dão voz. As dores que não têm voz estão por toda a parte, à espera de se fazerem comuns, portanto humanas. Isso por que o humano está entre a dor e o falar.
Eis a questão: mamíferos nascem desmontados. Essa é a graça da sua dentição especializada, da sua digestão em etapas, da sua capacidade de controle térmico, da sua pele sensível e sensibilizante, dos seus hábitos flexíveis, do seu olhar enigmático. Seu corpo não nasce pronto, precisa ser montado, ter suas partes conectadas, o que acontece durante o seu processo de maturação. Isso permite também a sua organização como agenciamento coletivo complexo, outro fator essencial da sua maleabilidade. Outros vertebrados normalmente necessitam de uma acoplamento preciso com o meio ambiente, e é assim que não os vemos (com raras exceções) proliferar no Antropoceno. Aos mamíferos não humanizados também não vemos com facilidade, mas muito porque os identificamos – corretamente – como ameaça.
Humanos nascem desmontados a ponto de falharem em passar por espécie, ou mesmo gênero. Sua montagem maquínica, lenta e laboriosa, produz e reproduz o que identificamos como cultura, um outro nome para humanidade. As culturas são multiplicidade, a humanidade é multiplicidade. Para além das culturas, parece ter emergido um modo de produzir humanos em série. Capitalismo se chama a esse regime dos corpos montados à semelhança uns dos outros, ou em poucas séries genéricas, de modo a funcionarem como tijolos, parafusos, vigas, e outras peças de medidas padronizadas, e/ou cujo processo de fabricação é padronizado. Eis o homem. E eis que os contra-gêneros devem cuidar da sua diferença, da sua montagem singular, dos seus acoplamentos, e mesmo das coisas que crescem na sua pele, espontaneamente, unhas, cabelos, cílios, e a pele em si. Teve antecessores esse modo de produção, é provável, não se pode criar isso de uma vez só. Ocorre que, na saída dele, é preciso aprender a respirar novamente. E a comer, a beber, a defecar, a transar, tudo isso de novo, e muitas coisas será preciso criar que não existem ainda, que o humano é sempre e muito feito de coisas que não existiam ainda. Mas sem a cultura/multiplicidade como ponto de partida, estamos como a floresta desmatada: quando nascerá no seu lugar algo que funcione?
