Coisas que fazem mal
Dizem que as substâncias químicas fazem mal. As “substâncias químicas” são máquinas que se supõe não existir no mundo que “faz bem”. Toda ingesta, vapor, gás, pó, ou coisa que se toca é possível, desde que prometa a semelhança. A história humana, entretanto, não é a história das semelhanças, mas a das experiências com todo tipo de maquinismo, ao qual se vai enrolando em laços de palavras. Não muito mais que isso.
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O que interessa a quem não cessa de falar do que faz mal (e não do que lhe faria algum bem) é, para retomar um tema de Foucault, a sedução que lhe pode proporcionar o pensamento de um descuido de si, de um descontrole. O descontrole, ou a perda do controle sobre si é um pensamento recorrente, nessa época que chamamos um tanto erroneamente de “Antropoceno”, justamente ao fim daquilo que se poderia qualificar como humano, propriamente. De outro modo, poderíamos dizer que é da barbárie que se fala, mas não como um elemento indiferenciado. Fala-se da barbárie como um objeto de interesse, como algo a ser concebido adequadamente, e também – talvez mesmo essencialmente – do ponto de vista de uma filosofia prática.
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E se fala da miséria da civilização, e da sua capacidade interminável de produzir o sofrimento, e de como esse sofrimento legitima as ações que o mitigam, ou de como esse sofrimento dá a uma nação a sua história, até mesmo a sua língua, e também a cada vida pequena que se narra em desventuras cujo pano de fundo é uma cultura na qual se pode inscrever. Pois o sofrimento da barbárie é de um tipo inteiramente diferente. Ele é um sofrimento surdo, sem nome. É um sofrimento denso, compacto, que se desdobra sem parar, e sem negação. O pensamento do exterior [Foucault] é a admissão da possibilidade de uma barbárie que não seja negativa, que não se situe geograficamente, para além das fronteiras da civilização, por diferença em relação com ela. O mundo desconjuntado, entretanto, pode até ser um mundo hiper-sincronizado, não um mundo em que o tempo como que se desconjunta, mas um tempo compacto. Buraco negro.
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As mães não dão à luz corpos de bebês, a partir dos seus corpos, não é isso o que os mamíferos fazem. As mães fazem dos seus corpos muitas coisas, mas crianças não estão entre estas coisas. Por exemplo, as mães civilizadas dão à luz os pais das crianças, dos seus corpos. Às vezes isso funciona, às vezes não. De todo modo, nunca é só isso o que acontece. O que interessa é que a esse “dar à luz” corresponde um ponto de silêncio, desse lugar real nada pode falar. Isso é o que torna a civilização impossível, no fim das contas.
