Enclaves
O que têm as feministas, os refugiados, os capitalistas e os cientistas em comum? Eles, por definição, não têm acesso direto ao poder. Eles produzem influência. São invasores, mas permanecem em fuga. Exiters, invaders. Quando interrompem sua fuga, fazem enclaves, não países. Os enclaves são redes de conexões fixas. Socialmente, pode-se pensar nas conexões de último recurso, como no caso das instituições de governo destinadas a agir em último caso. No caso das pessoas, são as relações que permanecem, quando as identidades terminarem de gorar. E existem as corporações, as neo-igrejas, já ao largo do modo de produção capitalista.
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E então não há mais países, só enclaves. Não há mais linhas de fuga, não há tecido. Suspensão gasosa. Mercado total. Corpo total. E enclaves. Porque não há mais países, não há mais meios de confinamento, resta a influência como força produtiva. Como se vive assim? Esse é o momento da guerra total? Talvez não, mas de algo também terrível.
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Quais são os seus enclaves? Para onde você vai ir quando for desaparecer?
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Pensar.
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Pensar custa caro ao corpo, ele se ressente de não estar a não pensar. Qualquer um sabe disso. Só pensa quem está privado dos meios de não pensar. A história dos meios de não pensar é a história das formas de governo. Todos desejam não pensar, sem exceção. Quando uma forma de governo desaba, parece que as pessoas todas começam a dizer tolices ao mesmo tempo. Isso não é porque pararam de pensar, mas porque começaram. Os bons professores e estudantes de filosofia parece que não dizem muitas bobagens, mas é justamente porque exercitam estratégias de não pensar, enquanto pensam. Os saberes (que a Terra é redonda, que é um planeta, que gira em torno do Sol, e que atrai corpos e por eles é atraída, etc.) são cicatrizes da mente que foi forçada a pensar. Quem se criou numa época em que não havia vídeos para tudo aprendia, não porque tivesse acessos e liberdades, mas porque estava privados do repouso do pensamento, porque vivia um momento de otimismo, em que essa maldade era percebida como vastamente compensada pelos supostos benefícios de um modo de vida tomado como líquido e certo. Resulta que as cicatrizes desses saberes estão ainda aí, muito tempo depois do desaparecimento dessas certezas.
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Ao professor, o que resta fazer, então? O trabalho de não torturar os alunos, de não submetê-los a suplícios, se possível de impedir que se machuquem pensando, de ajudá-los a tratar dessas coisas do pensamento do jeito que aprendeu. E quando adquirem saberes, tratar de estar ao seu lado, para o consolo, e para rogar que não se convertam em torturadores. Então quando dizem que os alunos de hoje não prestam, que não pensam, o que ocorre é justamente o contrário. Pensam demais. Isso porque os meios de não pensar lhes estão fora do alcance, uma vez que os governos desabam. E dizem bobagens, claro, mas esse é o efeito de pensar demais.
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Essas pessoas, e máquinas, que compartilham estuítes (estultices-Twitter) estão todas ocupadas em pensar demais. E procuram formas de governo substitutas, desesperadamente. Despóticas que sejam, qualquer coisa serve. Precisam de silêncio, mas ele não aparece. Os imbecis se calarão um dia, porque o seu mundo vai encolher até o tamanho de um caroço de gergelim, enquanto o sofrimento físico vem ocupando o lugar do psíquico. O que resta aos demais é viver este momento com a felicidade que ele merece, olhando nos olhos uns dos outros, com alegria, estes que terão adquirido a habilidade de, por conta própria, evitar de pensar demais.
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As redes de partículas impõem um desafio fatal às instituições, para além do princípio da contradição. São essas partículas heterogêneas nômadas? Ou serão mesmo mônadas autorreferentes, deprimentes? Dupla face. A ameaça é invisível, mas a oportunidade é duplamente invisível. O Gurmukhi é só um alfabeto, ou é a verdadeira língua? O Guru Granth Sahib usa o Gurmukhi, porque ele é a afirmação da univocidade pelo som que sai da boca do guru, mesmo que as línguas em que está escrito sejam diversas. Aliás, porque as línguas acontecem de ser diversas. Ainda assim, não é a tradução o indicado para a obtenção da univocidade, mas o registro fonético de/em cada língua. Assim são o Corão e também os textos da tradição judaica, com a diferença de já estarem escritos na unilíngua e no unissom. Mas não seria então o som que sai da boca a própria língua?
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As redes de partículas são invisíveis porque são heterogêneas, e são potentes porque as partículas heterogêneas proliferam, e se conectam em quantidade nunca vista. As conexões heterogêneas cruzam a distinção entre mente e matéria. Isso é fala. O que é o heterogêneo? É o heterogênero.
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Os enclaves estão entre as nômadas que se pode ver, o que é pouco diante do que se cria. "A matéria não existe, tudo são relações numéricas, tudo é computação". O que significa isso? Não é questão de ontologia (existe?), nem mesmo é uma "lógica".
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O monoteísmo se esgotou.
