Hiper-híbridos
Há os híbridos, há o projeto da purificação, a síntese do moderno [Latour], e há o momento em que se testa a húbris da hiper-hibridação, das experimentação com as núpcias antinaturais. Como se chegou a esse ponto? Há uma história biológica dessa busca, quando se começa a misturar o vivo e o não-vivo. E há uma história física, quando se começa a misturar natureza e artifício (como é o caso do neutrino [Stengers, Cosmopolitiques I], e da matéria obscura). Há também uma história matemática (na fronteira do rigor), ou química, artística, política… Há até mesmo uma história militar dessa busca. Teria que haver. Há uma delícia apocalíptica nisso. Qual é a essência dessa busca? Como se obtém a autorização para desrespeitar quase que propositalmente a interdição que antes impedia sequer de enunciá-lo? A partícula elementar da modernidade é o homem. É ali que se situa o mito, as interdições que lhe são associadas, e portanto a formulação do princípio de purificação que propõe uma geografia em que natureza e cultura são territórios disjuntos. Que outra mitografia se coloca no lugar deste, diante do qual somos tomados como os selvagens o foram por nós, na sua cosmologia?
Tomamos as partículas uma a uma, desde então. Eis uma ousadia. Uma partícula não está para ser pensada senão como população, mas agora as tomamos uma a uma, contra a sua natureza. Moléculas, “átomos”, nêutrons, nucleotídeos, bactérias e proteínas. A membrana das células. Os neurônios, a sua periferia. Afecções, Frases, Gestos. Memes. Ocorre que durante a maior parte da sua existência as partículas viveram em silêncio. Mesmo quando começaram a poder ser ouvidas, não se cogitava de fazê-lo. Quando terá se dado a ousadia de fazer da sua escuta a nova regra? Informação, seria o seu nome comum… mas não. Como medida da potência, poderia ser, mas tornou-se medida do possível. Ilusão de controle. Daí que a questão republicana é necessariamente uma questão judicial [Latour], não de autoridade pessoal.
O que significa "O computador não existe"? Significa que a potência, ali, é corpórea, como a das pedras, e não axiomática. É linguística, mas no sentido de uma pragmática. É linguageira, mas no sentido do ser da fala. Que fala? A dos jogos, de certa forma. Um exemplo disso seria se fizéssemos um modelo matemático empírico de um objeto computacional, quer dizer enquanto objeto propriamente físico, e o comparássemos ao modelo matemático puro que estava presente por ocasião da sua construção, aquilo que acreditamos, possivelmente, que o objeto é. Para isso teríamos que identificar o setting pragmático do objeto, e começar a formalizar então o seu funcionamento “externo”, por assim dizer. Se esse setting puder ser mantido em estado relativamente genérico, teríamos aí a chance de ver aparecerem como que as duas faces de um espelho. Aí estaria a inevitabilidade de se considerar um híbrido, quando se fala de um sistema computacional que realmente funciona. Em outras palavras, aí residiria a impossibilidade da pureza computacional, que se liga, paradoxalmente, à pureza da sua origem suposta. Evidentemente, esse seria um exemplo reduzido, meramente elucidativo. A realidade dos sistemas computacionais se pareceria mais à dança polimórfica inapreensível de um caleidoscópio, ou coisa ainda mais complexa.
Buscamos a pacificação perdida. Diante do inquietante, do sinistro, estamos mudos, ou então falamos como quem está possuído pela síndrome de Tourette.

O inquietante pode emergir agora da falha em cumprir com a exigência de purificação na separação entre natureza e humanidade. Eis que, na natureza – que deve ser historicamente transespecífica – o masculino se subsume ao feminino, no sentido de que o feminino é a linhagem do corpo único (sem órgãos?) da vida como continuum, e o masculino pode ser apenas elemento do jogo dos códigos, da diferenciação combinatória, elemento incidental, circunstancial, do trabalho da diferença. Integrável ao phylum maquínico, esse feminino? Ele certamente não é misterioso, e essa é a chance de saída do estranhamento. Ele é objetivo. Enquanto isso, na humanidade moderna, é o homem que deve propor-se como padrão de referência, do qual a mulher aparece como diferença. Os patriarcados tradicionais se produzem a partir de máquinas de guerra, não de padrões genéricos. Não há ali espaço para esse estranhamento, porque não há o cotejo moderno entre natureza e humanidade. No pensamento de gênero o masculino deve ser a referência, porque em qualquer lógica de gêneros o discreto – o combinatório – fica em evidência, e é promotor das evidências.
Há um caminho de ampliação do alcance deste diagrama, que vai nos levar, por exemplo, à elaboração da diferença entre processo primário e processo secundário, ou até mesmo entre ser e substância, e mais além. Vai nos levar também de volta a uma consideração da imanência, a um retorno ao chão. Ele começa, não com a sexuação, mas com a letra. Existe também a letra-natureza, e a letra humana. Para nós, modernos, a primeira só não é perturbadora demais se pudermos agarrar a segunda, como um talismã.

As partículas evocam a letra-natura, mas elas nos aparecem somente já codificadas pela letra humana. Serão libertadas pelas interfaces estranhas com que vêem exaurida a capacidade de sobrecodificação da letra monádica.

A letra sacra, letra-som (faletra), foi conexão formadora, passagem entre a letra-natura e a letra humana (a monoletra). Ela ainda está presente como condição de possibilidade da letra humana solta. O projeto de conversão da letra humana em máquina de domesticação da letra-natura é o que se chama aqui império do sentido. O império do sentido coincide com a comodificação, com a integração inevitável do discurso ao regime da reprodução do capital, eis porque não há propriamente uma práxis pela via da racionalidade discursiva acadêmica, ou mesmo institucional. O discurso se comodifica ele mesmo, se "marquetifica". Contemporaneamente já não mais se candidata a ideologia, ao menos não a partir do momento em que o capital completa sua conversão em modo de subjetivação. Somente fora da letra humana se encontra ainda a ação. E há o acontecimento de que se fala, desde que se fala em estranhamento, o anti-acontecimento – melhor dizendo – que é a degeneração da letra humana em letra esquizo. Por isso não se faz mais poesia. O guarda-chuva está furado, a arte se espalhou por toda a parte, mas é selvagem agora, como foi antigamente. Não se escuta a letra sacra, e no entanto ela está por toda parte.

Biface da letra (letra esquizo)
Este não é o desenho de uma linha de tempo. Este é o diagrama de uma máquina, de uma nanomáquina, cujo produto industrial é o inquietante, o sinistro. Aí sim, teríamos uma era, a era em que o normal se desvanece. Teve uma vida breve. O primeiro programa de computador é o primeiro momento de desistência. Obviamente, isso precede até mesmo Babbage. Em algum momento do barroco, já se desiste do normal, mesmo enquanto se o inventa.
A letra-natura não será visível, mas ela se deixa pressentir, pelo sinistro. Seria a letra-natura Real? Questão vazia. A letra-natura é, pela sua potência, que se manifesta pelo modo como se diferencia. Dupla potência da letra: combinatória (indivíduos entre si: grafema, nucleotídeo, elemento), conectiva (núpcia heterogênea de grupo codificante com grupo codificado: palavra/semema, códon/aminoácido...). No caso das linguagens computacionais, não é que os trechos de código de máquina se conectem a palavras, mas ao contrário, são os lexemas do programa que se conectam passivamente aos componentes de software. Não há como ser de outra maneira.
