top of page

Macromônadas

Seguiremos a trajetória da formalização pelo seu reverso, ao encontro da sua borda. Ela leva ao indizível? Ora, deve ser indizível inclusive o caminho desse reverso da formalização. É por isso que o anverso do formal é tão fácil de tomar como parte da natureza, e como imperativo: “Formalize-se tudo!” Algo ainda maior do que a ciência clássica estaria entre nós, pensam. Nós agora somos isso, crêem. Ela mesma, no entanto, revela pouco ou quase nada da (sua) natureza. Acontece que a formalização é imune à razão crítica, ou seja, à razão criticada. Que isso se aplique, não só a problemas grandiosos, mas também, e especialmente, aos mais banais joguinhos e aplicativos, será talvez uma surpresa. Pois um modelo explicativo físico (da natureza) fala de algo que é da ordem do observável, ele faz parte do que faz problema para todo aquele que joga esse jogo social. Uma fórmula que se candidata a lei da natureza inclui as condições da contemplação do fenômeno que a pode verificar. Ela nunca está sozinha, é uma relação entre variáveis e constantes, e a condição está dada de que esses signos devem vir acompanhados de caminhos de observação, andaimes a partir dos quais o edifício da teoria possa erguer-se. Algo ainda precisaria ser dito a respeito do modo como esse conhecimento transita para a eficácia. De início, a definição primeira, o ponto de partida, deve ser algum conceito de ineficácia. Esse sim, mereceria que se lhe traçasse a genealogia, não é algo trivial.

Nesse meio tempo, a matemática, por si só, precisou aprender a ser um discurso sem objeto, ou cujo objeto não oferece exigência alguma, salvo a capacidade de dizê-lo com consistência e com uma certa elegância, quer dizer, com uma certa graça e economia de meios. Um discurso que se ocupa do que pode ser dito sem experiência, sem fenômeno, sem existência, e, no entanto, pode ser dito. Na prática, um método em permanente estado de negociação, do ponto de vista da sua semiótica. Até certo ponto, mas estritamente, uma arte.

Já um sistema computacional começa quando se dá alguma materialização de uma das teorias dessa matemática pura. Uma materialização no mais das vezes selvagem, mas é possível supor que esteja percorrendo um caminho de civilização, o que se explica particularmente pelo abandono de certas ilusões. De todo modo, o critério fundamental que existe aí é o da efetividade, e também o de uma certa eficiência, mas não há andaime algum. Há caminho de ida, mas não de volta. Não há edifício. Quando há algo que se assemelhe a um caminho de volta, trata-se apenas de um chamado, um chamado para que a teoria matemática seja adequada, mas isso não é uma crítica à teoria anterior, não propriamente. Ela permanece no seu lugar. Não obstante, algo se espera de uma teoria matemática computacional que venha a viver no mundo. O que é isso, que adequação é essa?  Veja-se, há problemas de representação, até mesmo de objetos propriamente matemáticos, como é o caso dos números racionais para começar, e mesmo dos inteiros, mas há muitos outros problemas de representação. E existe o caso da computação que se dedica aos modelos matemáticos da Física, ou mesmo às construções já formais de uma certa lógica do sentido, e aí ainda estamos às voltas com problemas de vorstellung, de (re)apresentação. Mas há algo que vai além desses problemas. Alguém já disse que o dinheiro é uma teoria matemática tornada realidade, que esses maquinismos não são novos. Talvez seja disso que estejamos falando. Mas veja-se que essas coisas já eram incriticáveis. Isso talvez porque, desde o início, o que esteve em movimento foram os modelos matemáticos, que passaram a ser automodelos, e não mais modelos de alguma coisa, como se estivessem a emular o espírito do seu tempo. Mônadas macroscópicas. Um tempo de espíritos, autoeficientes, ou subjetividades, como nos acostumamos a dizer. O trabalho da sua escrita é o trabalho da produção de algo que não mais se deixa afetar pelo mundo, ao contrário de ser algo que fala do que é impassível no mundo.

"Uma teoria matemática pura se apresenta." Que sentido pode ter isso? Outra coisa: uma teoria começa a ser computacional quando começa a incluir o seu problema de notação, quando se dispõe a estender o seu rigor a ele, e deixar que ele a comande, de certa maneira. Isso poderia ser uma versão do dizível. Uma versão imune à contaminação, à impureza da utilidade, da aplicação. Uma versão que se alcançaria por um processo durante o qual o visível fica para trás. O jogo se complica sobremaneira, entretanto, a partir do virtual que ele comporta. Será o caso, como questão de método, de preferencialmente abandonar o aspecto Ψ do conjunto, e tomá-lo puramente como experiência, quer dizer, compor pureza matemática e experiência, não propriamente conhecimento. Para piorar as coisas, uma teoria matemática pura já não é “uma”. Ela mesma já é, enquanto número, algo problemático, para dizer o mínimo.

Rumo à experiência comum da matemática pura: eis um grande desafio. Para começar, uma teoria matemática não fala sobre coisa alguma, não é a formalização de nada, não é a “versão” matemática de fenômenos quaisquer. Ela pertence ao campo da experiência por direito próprio. Nesse momento, os que se interessam pelo estruturalismo e suas variações podem estar imaginando que esse é o seu terreno. Sistemas formais lançados ao chão, tecendo realidades, pensam, é a sua praia. A advertência de Lacan é que essa – digamos – escolha só representa o início de um outro sortimento de dificuldades.

O que é uma variável? É uma lacuna, mas não na matemática da física. Ali, a variável indica algo que tem consistência a partir de um imaginário. Um observável, idealmente. Já numa fórmula de um sistema de lógica de relações, ou de classes, ou mesmo de proposições, uma variável é mesmo a simbolização do vazio em torno do qual as coisas giram (道德经, 11). Por aí se começa a fazer algo funcionar. Pode-se mencionar o domínio de valores da variável, isso deve ser importante, mas em algum momento esse domínio, por sua vez, pode precisar ganhar uma estrutura formal, ou essa estrutura deve poder ser sugerida ao menos, e é aí que o não-dito retorna. E ele sempre retorna, a tal ponto que às vezes nem se começa a falar, ou se começa pelo meio da frase, ou do argumento. Com as constantes o que acontece no caso da física é que elas se dão como singularidades, enquanto que numa teoria puramente matemática elas são signos, os mais puros signos que existem. 

Há dificuldades adicionais, entretanto, e elas nos dizem coisas mais interessantes ainda. A começar pela constatação de que a matemática pura não vai produzir consistência que parte de um imaginário. Ela, de direito, não faz sistema. Os sucessos que caminham pela via dos programas formalistas são escassos. Indizível e invisível se tocam, e o objeto resultante é intocável. A formalização deve caminhar selvagem. Daí que o que se realizar a partir daí não pode deixar de atentar contra a lei simbólica, e ao mesmo tempo não pode funcionar sem que ela lhe dê contorno. Ou pode? Talvez possa. Por exemplo, qual é face da inteligência artificial, já no reverso da formalização? É a da sedução, não mais a da formalização. Essas coisas começam a deixar de ser selvageria quando se implicam em articulações desejantes, quando fazem falar, realmente.

bottom of page