Matemética
O melhor da ciência do século XX é um movimento de desistência. Uma física que não é mais ciência da natureza. Uma ciência social que não ousa ser práxis. Uma psicologia que desiste de ser razoável. Uma matemática da qual não se pode nem falar... As ciências desistem do universal, e a filosofia se volta então para o problema da ação. É isso o que autoriza a reabertura da caixa de Pandora do discurso.
Na alegoria narrada por Lacan em “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”, há três prisioneiros, dos quais um será indultado pela direção da prisão. É dito a eles que em suas costas será colocado um disco, de côr preta ou branca, escolhidos de um conjunto de três discos brancos e dois discos pretos. A tarefa de cada um é descobrir qual a cor do disco que está em suas costas, tendo como informação apenas a cor dos discos dos colegas. Três possibilidades que se apresentam a cada um deles: ou os dois discos conhecidos são brancos, ou os dois são pretos, ou há um de cada cor. O primeiro caso, o mais interessante, é explorado mais prolongadamente pelo autor, e dá ensejo à sua questão de fundo. O terceiro caso é aquele em que a descoberta da verdade depende ainda de uma suposição da subjetividade alheia, mas a decisão ainda é possível sem que a interioridade do observador esteja implicada, portanto num tempo que não tem espessura. O segundo caso (dois discos pretos) é o da certeza.
A ciência positiva é a codificação, e o registro, dos casos em que os dois discos vistos são negros. Mas essa é a ciência regressiva. Ela é a imagem ainda possível da ciência. Por outra, ela se orienta para a imagem de uma totalidade completa, sem a qual a autoridade da palavra de ordem não tem suporte. Já a ciência bárbara é movimento de maltas, incontrolável, sem autoridade, sem autoria, sem autorização.
Não se pode falar sobre as palavras de ordem. A escola responde por converter as sentenças declarativas que os movimentos sociais eventualmente produzem em símbolos. A escola clássica é aquela que faz disso uma indústria. Nela, o professor é o representante de um mapa conceitual que é tomado como visão do todo, e é por ele defendido nesse lugar, porque isso lhe dá a possibilidade de sustentar a sua voz como palavra de ordem. Uma sentença declarativa (mesmo que desestabilizadora de mapas anteriores: “Aves são répteis”) só pode existir na medida em que incorpora uma ação, uma ação na linguagem. Esse registro de discurso ainda existe, ainda funciona, mas o que acontece na escola contemporânea é que esse discurso não é mais organizador, por que não está presente um discurso organizador. E não se pode falar sobre isso, esse é o dado.
O Gedankenexperiment de Alan Turing conecta o fazer dos matemáticos a um fora, a algo que estava recalcado: o dilema da ação teórica. Para além da questão já clássica da práxis na filosofia política, a ação teórica dos matemáticos é o campo em que se pode elaborar uma retomada da ação política no campo anti-monádico da enunciação.
O conjunto das configurações de uma máquina é um número, ou uma função, ou um conjunto, ou qualquer objeto matemático. Estamos totalmente dentro da formalidade. A passagem de uma configuração a outra é, ela mesma, um mapeamento, uma operação (de reescrita). Por outra, do ponto de vista do que é formalmente computável, um objeto matemático não existe senão enquanto regra de produção simbólica, que inclui toda a estrutura sintática de que fizer parte. Indissociável de uma ideia de mecanismo é essa caracterização, ainda que virtual. Como consequência, nesse plano existem as singularidades, mas não o objeto individual. Problema: cria-se um dupla-face. Estamos a inscrever a ação (teórica) no campo da formalidade, ou estamos a criar uma dobra da ação do pensamento?
Ao largo da ciência como matemática experimental [Wolfram, A New Kind Of Science], ao mesmo tempo ao largo de qualquer ativismo comunicativo, há a ação da pessoa com deficiência. A pessoa com deficiência é o minoritário sem falta. Com, não sem. Recupera-se aí a vulnerabilidade perdida das minorias. Aí se reencontra a ação teórica, anti-monádica, computacional, imanente, desistente, indestrutível.
