Ponto fixo
Desde o início, se trata da vinculação do estudo dos algoritmos ao campo, digamos, da história dos sistemas de pensamento, para além do – mais restrito, territorializado – mundo dos objetos. Os algoritmos não fazem parte de um campo do saber, simplesmente. Eles estão do lado das possibilidades de saber.
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O que é um sistema de lógica formal? Como ele se situa no campo da letra? Ora, trata-se de um exercício semelhante ao dos físicos num certo sentido, a saber, o da elaboração de uma versão idealizada de um objeto, de modo que se possa ir atrás do que é mais importante: a arquitetura de um modelo explicativo. O modelo explicativo não é uma imitação da realidade, ele é uma versão da realidade, que mantém com ela correlações – supõe-se – essenciais. Ao menos esse é o objetivo do jogo. Em algum lugar, entretanto, as semelhanças se perdem. E no caso do sistemas de lógica formal não é de um modelo explicativo que se trata. Eles são objeto do pensamento, mas também são imagem do próprio pensamento. Assim como os pontos materiais da física, a lógica matemática também tem seus pontos, e embora seu valor semiótico seja bastante diferente, eles também são adimensionais. Nisso, são mesmo pontos. As variáveis são até mesmo lugares, mas lugares topológicos. A principal diferença está em que as fórmulas de um sistema de lógica são também pontos, não singularidades como as leis físicas. Há singularidades lógicas, mas elas são surpreendentes, misteriosas, até mesmo catastróficas.
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Os sistemas de lógica formal são, digamos, o resultado de um trabalho de formalização. Os modelos explicativos da física também, mas eles não têm o poder de apagar a realidade à qual se endereçam. A graça é essa. Já os sistemas formais, idealmente, apagariam aquilo que foi o seu ponto de partida. Aí se situa uma questão filosófica importante, a de saber se esse apagamento é sequer possível, ou seja, se existem o significado e a ação como instâncias intransponíveis. De todo modo, temos um ideal de formalidade, que não é um jogo de representação, ou de modelagem, mas um projeto de elaboração de uma coisa que seria, em si, um melhoramento do objeto original, até onde se possa traçar claramente o limite metodológico. Nesse momento, a lógica formal passa a ter, e ser, um campo de estudo bem definido. O ideal da autorreferência está implícito, ao menos como horizonte. E o mundo dos cientistas da computação é um mundo em que esse ideal já está realizado. Daí sua paixão pelos pontos fixos, pela álgebra abstrata, pelos elementos neutros, pelas identidades. Mais recentemente, redesenharam a autorreferência no âmbito de uma teoria neutralizada, monádica. Suprimiram a questão “sintática”, como dizem, saíram do mundo, mas trazem as suas idealidades de volta para o mundo, e isso não os abala. Escandalizam os leigos com seu pensamento sem metáforas, isso os diverte. A suposição da neutralidade é insana, evidentemente, mas a tentativa de desmascará-la é cômica. O alienado se candidata a ser mais honesto do que o são, no campo da ação, é só isso o que faz. Ele se candidata a agir de acordo com o que pensa, e nisso tem chance de sucesso.
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A questão é que a formalização não se restringe a uma questão ligada à conduta. A formalização ganhou a sua engenharia, e a sua indústria. É aí que as coisas se complicam. O programa formalista se torna esotérico, e utópico, no âmbito da teoria das categorias. Em paralelo, a forclusão do pai ganha escala planetária. É o abandono de qualquer noção de eficácia. A resposta paranóica dos fundamentalistas está à altura: cuidar do fim do homem também é algo que pertence a Deus, não há o que fazer quanto a isso. De todo jeito, não há o que fazer. Pois a questão é justamente essa: fazer, ainda. Talvez tolerar um pai, digamos, aquoso. Parece que até a psicanálise resolveu se desviar desfazer do Édipo. Talvez seja então o caso de retomá-lo, de alguma maneira.
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Se a didática da ciência clássica tratava de ensinar a crer nos próprios olhos, a didática da ciência bárbara ensina a crer nas letra que se lê com os próprios olhos. A diferença está em que a letra não olha de volta, como as coisas do mundo.
