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Gestos

A palavra que normalmente se traduz por “fé” no Novo Testamento (pístis) seria talvez melhor traduzida, a partir de persuasão, e também confiança, por convicção. Saber, mas não um saber-que, e sim simplesmente saber. Saber sem provas, mas o saber intransitivo é sem provas. Pístis não evoca essencialmente, nesta acepção, pensamento, emoção, sequer conteúdo. Que dela se derive a confiança em conteúdos é secundário. Eis um problema para a liberdade dos modernos, que reconhecem apenas estados de espírito (pensamentos e emoções), e consideram que o saber intransitivo só pode ser preconceitual. Por isso se traduz pístis por fé, ou crença, ou seja, para forçá-la a ter conteúdo, material. A fé passa a ser fé em uma noção, que vem carregada da emoção, que por sua vez a corrobora pela intensidade, e o sujeito a confirma pela insistência, pela sua tenacidade. Presença  da reforma protestante, talvez. Interessante que “conceito” em filosofia, também não coincide com pensamento (como “aquilo que passa pela cabeça”), ou emoção, que são afetos. Houve também quem postulasse [Peirce] que tudo isso são crenças, mas que se fixam de modos diferentes, e com intensidades diferentes.

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Mais interessante do que saber do quê está convicto aquele que está convicto, é perceber o seu menosprezo pelas coisas que estão fora de relação com a (sua) convicção. Ser convicto, nesse sentido, se define precipuamente pelas coisas às quais, em virtude da convicção, se está desatento. Isso vai se voltar contra a própria convicção, um dia –  esse é o gesto moderno, cartesiano talvez –  mas não se trata de um niilismo, não necessariamente. Isso porque sobra sempre ao menos um resíduo de convicção, duro, que vai se converter em sintoma. Na medida em que se é moderno, se diviniza a consciência, se mitifica a individuação. Se é sintomático. E caso essa doença autoimune da convicção venha a se "curar", onde vai se localizar novamente o saber? Em um péssimo lugar, provavelmente? De sintomático, passaria a que condição, o nosso ex-anti-herói?

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Parece que o saber é algo de que o corpo humano precisa, e espera receber. Certamente não é algo que se possa dar como responsabilidade ao que quer que seja de obter pela sua própria força. Se retornarmos ao uso das personagens conceituais gregas, Pístis talvez fosse algo que pudéssemos converter em imagem.

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O gesto é a partícula humana. A asserção antecipada de Lacan. O gesto e a convicção se tocam. O gesto parte do sem-agir (無為), e esta é a possibilidade de uma clínica da convicção, que seria necessariamente também uma convicção de clínica. O gesto é o que se transmite, e o que comanda. Há uma política do gesto, que de gestos de faz, e uma educação do gesto, também feita de gestos. O mais importante é que o gesto está no mesmo nível de todas as outras partículas.

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As distinções que se fazem entre o que seria da ordem de uma sintaxe, de uma semântica, e eventualmente de uma pragmática, são descendentes da constituição moderna [Latour], são seus derivados, ou seja, são filhas de separações primeiras, como a que se faz entre natureza e humanidade. Dilemas que se pode ver remontar a uma microfísica do gesto, a uma certa dimensão judicial e jurisdicional da existência.

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