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Letra pura

Era uma vez uma semente de cedro-rosa. Ela vinha de uma árvore que foi derrubada, arrastada junto com tudo o que era tronco, planta, arbusto e mato que se erguia do solo, em algum lugar da Amazônia. A semente caiu no chão do solo, agora sem mata, chão. Ela saberia fazer um cedro-rosa, teria até orgulho disso – um orgulho vegetal –, mas agora descobre que não existe o cedro sem o contexto do cedro. “Descobre” é modo de dizer – e aí está o problema com Ortega y Gasset – porque é uma imensa confusão que resulta dessa descoberta, que de conhecimento mesmo não tem nada. Não tem jeito, a vida é o lugar da vida. Para o pensamento vale a mesma regra: o pensamento é o lugar do pensamento. Agora, quando as correntes do modo de produção (o Grande Modo de Produção) arrastaram os lugares do pensamento, descobrimos que as pessoas, que são sementes de pensamentos, não os podem germinar, porque falta o contexto. Impuro, raso, formal, é o que resta ao humano.

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Desejo de rigor é desejo de pureza. Se a impureza é o caminho, isso não exime de considerar o rigor. Se a superficialidade é o caminho, isso não extingue a fundura. Os pensamentos não merecem um catálogo. Todos os pensamentos serão pensados novamente [Nietzsche, consta], e cada pensamento vai quase sempre faltar no seu lugar, vai quase sempre deixar de abastecer a ação. Mesmo na raríssimas vezes em que isso não acontecer, que ganhos se pode ter? Na verdade os pensamentos não fazem muita falta, e sim os ritos [Confúcio]. Disso sim, vale a pena tomar nota.

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Se a formalização é o caminho, isso não isenta de retornar à letra pura, à letra carnal. Tudo isso é dupla face. Para a computação, a teoria das categorias é a última cartada. Trata-se de uma questão de notação. Sem que se interponha a questão metodológica de uma notação, as categorias não são necessárias. Elas são uma notação para uma lógica do genérico, que se justifica pragmaticamente (embora não na origem) no âmbito de uma exploração radical da capacidade de açambarcar do possível. Esse problema de assinalamento não é antigo, a matemática não se interessaria ordinariamente por esse tipo de coisa, potência de ciência que é. Os novos e sutis processos de formalização, que pretendem domesticar a irrupção hipermaterialista das máquinas nomádicas, é que fazem a exigência. Mônadas que vêm de monóides [estamos no terreno imaterial de Galois, não no muito material de Leibniz] invadem a pax programática da escrita dos programas, do que será software. A face contra-revolucionária dos algoritmos se revela. Será possível chegar a alguma cientificidade computacional, propriamente? E, no entanto, é impossível não supor essa cientificidade. De todo modo, sobre essa irrupção mórbida do possível, também é o caso de anotar alguma coisa.

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A questão da preservação de uma ordem do sentido, só de usar a língua sempre se a recoloca. Com que autoridade? Não importa. As nômadas são tais que ninguém se reunirá em seu nome. De máquinas impuras, selvagens, assim são elas. O formal encontra sempre um dual, um reverso. Que se o possa contemplar.

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