Um, número
A origem de uma tecnologia da informação propriamente dita precisa de uma explicação [Raymond Ruyer, “Cibernética e a origem da informação”; Brian Cantwell Smith]. De início, a possibilidade da sua reprodução está na execução insistente de um processo, que consiste na suspensão da cadeia significante. Esse é o único jeito de um programa de computador, que foi escrito intencionalmente, entrar no mundo. Se alguém consulta o calendário no seu computador, não faz o mesmo que se consultasse uma folhinha, ou um documento qualquer. A transferência eletrônica de valores não é o mesmo que a transferência feita com as mãos. A visão de uma conectibilidade geral que deu origem à internet fez surgirem novos caminhos de liberdade para os encontros, mas esses são encontros recessivos. O que frequentemente acontece é que a presença de um sistema de informações corresponda à introdução de uma nova mais-valia, de um novo trabalho não remunerado, e não do lado do consumo, mas do uso. É fazer parte de uma economia do uso inoperoso [Agamben] (e portanto não das trocas, mas das conexões e das metamorfoses) que se torna necessário à sobrevida, não mais a produção, porque é só pelo uso que se pode viver encontros. É por aí que se entende a transição da mais-valia animal, por exemplo na substituição do cavalo e do cão de caça ou de pastoreio pelo cão de afeto e pelo cavalo terapêutico. O exilado do uso faz uma política de adesão à lei bárbara da organização criminosa. Eis a ascensão dos movimentos que ostentam uma façade de extrema-direita. Diferentemente dos exilados da produção, que viajam em busca de oportunidades de trabalho, os exilados do uso não estão desterritorializados. Eles apenas não conseguem ser os adolescentes eternamente “transgressivos” (mas não delinquentes) de que se abasteceria a produção e o consumo.
Quando se consulta um aplicativo de mapas, partindo de um desejo ou necessidade, que ele converte em pontos de referência espacial, cabe ao consulente o trabalho de atribuir pertença dessa imagem-informação à cadeia significante onde essa codificação formal possa novamente ganhar espessura. Esse é um trabalho – interpretativo, até mesmo demiúrgico – que se faz continuamente, desde que o processamento de dados passou condicionar a organização da produção, uma vez que a informação não é “carta roubada” [Poe/Lacan], e sim algo que se totemiza. A proliferação desses processos de suspensão do significante, acaba por introduzir imensa sobrecarga de geração de sentido do lado dos regimes de troca. Essa sobrecarga é a base de um novo tipo de alienação reticular, com efeitos de dissolução do laço social (erosão da confiança, niilismo) e de reterritorializações de malta [Canetti]. Não se trata de imaginar que o problema estaria precipuamente no modo como a informação é “produzida”, ou de como o seu conteúdo ter-se-ia prostituído, e eventualmente manipulado, distorcido, falsificado. O problema do significante é, aqui como sempre, o do modo como as coisas ganham corpo, não alma. A comunicação se superficializa, não porque é controlada por alguma instância concentradora e produtora da “má informação”, mas porque sobrecodificar repetidamente o que se lê, ouve e vê é intrinsecamente necessário, e inevitavelmente exaustivo, insustentável.
Não é, portanto, a “despersonalização” a causa da decadência, mas a formalização. O princípio da formalização, universalizado, acaba sendo o da personificação impostora da lei, e portanto da sua invalidação. Quem fazia esse trabalho em outros tempos, e em que condições ele teria sido sustentável? A formalização que emerge da lei simbólica parte de um interdito, enquanto que a formalização forclusiva dos sistemas de informação vai justamente na direção de burlar esse interdito. Seria uma continuação dos processos de produção em série, e dos mecanismos de disciplinamento, mas logo se vê que a formalização informacional é uma degeneração antiprodutiva dessas maquinações, cujo objetivo era subjugar a produção, extrair dela algo. A possibilidade de eficácia dos sistemas formais está exilada para a sua periferia, ocupada por aquilo que se chama a expressividade dos modelos de computação – formalismos e linguagens de programação. Essa noção de expressividade é o acumulado da externalidade semântica (em sentido próprio) e pragmática, lugar onde se faria uma ciência da computação “selvagem” [B. C. Smith], vigorosa.
O que se pode dizer dos problemas que a formalização traz no seu interior? O que se pode dizer do embotamento da inteligência, do caráter necessariamente entrópico do processo? Essa é a questão. A matemática pura, enquanto lógica, tem se mostrado um museu interativo das limitações do pensamento. E as pessoas vêm sendo sutilmente educadas, não para tentar entender de onde vem aquilo que lhes é entregue como resultado dos processos de formalização – assim que eles são “renderizados” – mas para parar (de pensar).
A coisa talvez comece com o célebre teorema da incompletude/ inconsistência. Digamos que a definição do predicado "é-demonstrável" deva poder ser formalizada como um procedimento mecânico de reescrita, que produz um caminho que parte do conjunto de axiomas e chega à sentença cujo número foi dado. Isso é ser "demonstrável". Ser "não-demonstrável" é não ser uma dessas sentenças, estar em outro conjunto de sentenças, aquelas até as quais o procedimento mecânico não produz um caminho. Digamos que a sentença "a sentença n não é demonstrável" (sendo n o número dela mesma), tenha um caminho de demonstração. Nesse caso, a sentença "a sentença n é demonstrável" deveria ter também um caminho de demonstração, contradição que daria ao procedimento de reescrita acesso a qualquer sentença, destruindo a consistência do sistema. A alternativa é que a sentença "a sentença n não é demonstrável" não tenha um caminho de demonstração. Isso significa, por hipótese, que o procedimento de reescrita somente poderia alcançá-la a partir de uma versão incompleta, ou adulterada, do conjunto de axiomas. Como consequência, a sentença "a sentença n é demonstrável" deve ser falsificável, pelo mesmo caminho. Nenhuma das duas, portanto, pode ser demonstrada. O sistema comporta uma indecidibilidade.
Diz-se que então a solução deveria produzir uma alteridade dialética entre "é-demonstrável" e o conjunto das sentenças do sistema. Certo, mas já há uma alteridade (por certo ineficaz) na maneira como o sistema de lógica é apresentado como um sistema de representações. A alternativa seria pensá-lo como um único número, somente referenciável como ponto fixo de uma função definida com a partir da definição original. Esse número, infinito, de dimensionalidade crescente, imagine-se que não cessa de escrever-se, sem representar coisa alguma. Hipoteticamente dovetailing a si mesmo, redobrando-se. O algoritmo que escreve o número é imediatamente o próprio número, escrito de acordo com ele mesmo, enquanto se desdobra. Mas existem variações, pelo menos suas: em uma delas, o número escreve uma contradição, o que significa que ele se revela como puramente aleatório, ele mesmo uma multiplicidade de multiplicidades, impossível de referir. Em outra variação, adia continuamente a escrita de um conjunto de segmento em particular e é imprevisível se vão ser escritos em algum momento, ou não, e quando. Tudo o que se sabe é que, uma vez que um destes segmentos seja escrito, o número se torna uma contradição, e então se revela como puramente aleatório, ele mesmo uma multiplicidade de multiplicidades, impossível de referir. A função original não pode ter referente, mas a busca de um supercérebro persiste. Por isso a computação tem sido uma ciência contra a comunicação. Por isso o seu resultado é a parada geral.
Mas e se não fosse assim, se não houvesse esse furo? Se nenhuma perturbação fosse encontrada, e a lógica formal fosse pacificada, como desejavam seus pioneiros? Então ter-se-ia a auto-nomia, a autorreferência, finalmente convertida em ídolo, ou fetiche, definitivamente. Nem isso se tem. Existem outras brincadeiras lógicas. “Não-clássicas”, se dizem. A história a ser contada segue sendo a da perda da inocência. Resta que a pergunta da autorreferência não se diga, apenas se balbucie, ou se sugira indefinidamente.
Era uma vez uma mente que não supunha a autorreferência, uma mente incapaz de não interromper o pensamento, de não fazê-lo quebrar, constantemente. Essa é a condição de possibilidade de uma mente. Uma mente que se condensa, que se considera, é uma mente que pára.
