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Tecnologia da parada

A experiência inaugural do sujeito é a passividade. A passividade, entretanto, precisa ser “desenhada”, de alguma maneira, ela precisa ser introduzida na existência. Desde aí, a ela sempre se retorna. Há essa necessidade lógica paradoxal, de agir para que a passividade possa ter forma. Ela requer ação, para que possa desenhar-se. Há então duas descobertas insuportáveis, necessariamente reprimidas/recalcadas: 1) o que é mais verdadeiro de um interior é a passividade; 2) no exterior, não existe o Outro, e eu, só existe enquanto sofre. Não é pelo eu que qualquer músculo se move, salvo os músculos da fala. A ação pequena é esse exílio da passividade, essa asserção de certeza antecipada [Lacan]. A ação maior está no pólo coletivo, na potência da população. Essa primeira já foi objeto de repressão, covarde. Agora a segunda o será, mas sairá vencedora.

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Antigo recalque em evidência: a do desejo (sexual, do eros enquanto hilflosigkeit). Novo recalque em evidência: o da pulsão de morte, da verdade contida na repetição. É o esquecimento da necessidade do encontro fatal, do abandono de si ao movimento de disjunção, esquecimento que vai desautorizar a simbolização, e congelar o laço social. É ele que enseja um novo amor à tecnoburocracia, quase sem ambivalência, que afeta especialmente os jovens. As guerras, e as lutas, perdem o sentido, seja porque têm como horizonte último a aniquilação do mundo, seja porque elas também não são mais travadas em um “teatro de operações”. É nesse momento que a computação é construída como ciência da decisão, mas para melhor elidir as decisões, para melhor colocar as fatalidades entre parênteses.

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Nesse contexto, os movimentos sociais que rasgam a institucionalidade política não são movimentos que interpelem a decadência “de dentro”. São movimentos literalmente reativos, portanto, mas é contra uma estase que se organizam. É de uma parada que falam, é uma estase que denunciam, e essa estase é talvez o acontecimento original daquilo que percebemos como inovação, particularmente daquilo que entendemos como “tecnologia”. Esses movimentos expressam a interpretação de que é o Estado o agente que impede a produção de acontecer, porque se ocupa de distanciar as pessoas da produção. Em seu nome, exigem a remoção de qualquer governo humano, que no passado teria sido fiel, mas que se tenha convertido em agente da antiprodução. É como se não respondessem negativamente a qualquer projeto utópico progressista, mas os denunciassem em geral como farsas. O signo da farsa é o inquietante, o estranho, mas à diferença de outros tempos (de outros fascismos), em que foi necessário inventar o estrangeiro, desta vez ele está aí, alienígena, aberrante, em abundância. Ele é o agente da paralisia, que é preciso romper, e então não é o caso de recorrermos a uma visão alternativa, mas à cessação dos projetos, e das visões. Por isso é iconoclasta, ruidoso e literalista esse movimento: ele se ressente da falta que faz a fala na autorização do que está escrito. Na ausência da fala, hipostasiada pela onipresença da informação, a escrita acaba também não funcionando como possibilidade de registro, de contrato. Não se confia na memória do que está escrito, muito menos em uma interpretação comum. É o caso de trazer o texto junto ao corpo, relê-lo sem parar, e tomá-lo como hipertexto. Mesmo assim, acaba fazendo falta a fala de quem diz o que deve ser lido no texto. É preciso que alguém diga o que, “literalmente”, está escrito. O que parece cômico é uma estratégia de rede. A arte que se faz hoje é metonímica, literal, sem imagens. O surreal saltou da escrita para a leitura. O pensamento autoritário das maltas metaestáveis substitui o fascismo de massas do governo autoritário. Parece não ser da vontade de matar ao Estranho designado que nos fale o discurso dessas maltas – ao contrário das possíveis aparências – mas de poder novamente morrer, e morrer gloriosamente. Aparenta pedir licença para morrer o assassino que reivindica poder atirar naquele que toma por seu inimigo: do ato de matar estranhos é que receberia a autorização para afinal desaparecer ele mesmo. A explicação é insuficiente: há algo de agente artificial nessa movimentação.

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Eis que a tecnologia da informação é uma tecnologia da inação [antecipa-o o Baudrillard de Estratégias Fatais]. Ela é consequência desse movimento, e desse desejo, não causa. Ela não é uma tecnologia da produção, mas da parada – da parada geral. Ela não é uma evolução do trabalho, e sim a sua elisão. Como tecnologia da inércia, a tecnologia da informação é continuação da alienação, processo constitutivo da sociedade de massas. O arcabouço jurídico-administrativo tornou-se algorítmico e totalitário, mas não simbólico. Não há minimização do estado, na globalização dos mercados: esse arcabouço de protocolos é apresentado como um Estado Real, mas a essa parada geral não corresponde uma nova etapa da história geral.

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“Programação” de computadores é má palavra. Aquilo que se faz com eles é, sem metáfora, ou seja, por necessidade lógica, uma forma de magia. Ela é uma continuação da magia por outros meios. É pela magia que se poderá voltar a agir, mas a magia não é reprodutível, não é exatamente repetível. Uma economia da servidão é também uma economia para além da lei, em que o crime se normaliza como ação ainda possível. Já havia um presságio desse projeto de cessação da ação menor – genérica – no modo como a mais-valia deixa sem nomear o trabalho que não remunera, porque é ainda potência, portanto ação. O regime do trabalho abstrato já é um regime de externalização, digamos, de recalque da ação social, da própria sociabilidade. Indo mais além, a própria simbolização já teria sido uma sutura da ação, mas é justamente a visão de uma quebra da cadeia significante que torna imaginável uma tecnologia da informação. E desde então é de uma diferenciação do regime geral do símbolo, de uma perda da expectativa natural de uma conversibilidade geral que se trata. A motivação do que resta do modo de reprodução do capital, nesse caso, é situar a ação no campo das externalidades. Isso vai produzir um mundo em que a ação se encontra fora campo da mais-valia de produção, no âmbito de uma economia da servidão, lisa, que se abre sobre si mesma. Por enquanto, o que se vê crescer no centro é o que resulta da conversão da ação pequena em movimento desnudo, axiomatizável. A ação grande (que é também a possibilidade da parada genuína) reaparece em uma miríade de emergências locais, onde renascem nanoculturas, com suas línguas, inteiramente novas.

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