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Anti-mônadas II

Como se remunera um robô? Com o trabalho de fazê-lo funcionar. Esse trabalho ele devolve com o seu trabalho. Eis o princípio da circulação da economia robótica, da economia da servidão. Autômatos, automação: os gadgets e os robôs são a sutura possível da ineficácia simbólica, no campo do imaginário. Eles podem fazer semblante de objeto. Aí se colocam, entretanto, a questão da servidão (mesmo que de máquinas, é ainda servidão), e a do vazamento da questão do desejo na direção de um real: objeto autônomo, computação interativa.

Qual é o setting de um laboratório destinado à construção do que se poderia chamar de “inteligência artificial geral”? Seria um laboratório do descontrole.

Eis o que reintroduz o desejo no lugar da consciência, como problema: a redescoberta de que o autocontrole não existe, propriamente. Dizendo de outra forma: a visão de que o controle não pode ser atribuição de um cérebro, ou a instância imaginária alguma. A teoria social que importa é uma teoria inconsciente, e o inconsciente é uma teoria social em estado bruto. O mérito de Freud é reconhecer a sabedoria da tolice, nesse sentido.

A tolice antes da parada estava ligada a um falar consensual. A grande descoberta dos comunicadores que aparecem após a parada, que nos leva a esse tempo de ideias aberrantes, é a de uma espécie de pacto dissensual. Não é necessariamente tolo aquele que professa contrassensos, no âmbito deste pacto. A profissão dos contrassensos se dá sobre o pano de fundo da descoberta da possibilidade de um laço social que não se dá em torno de crenças, ou de palavras de ordem, quer dizer, de afecções comuns, mas de um laço construído em torno da afecção pela desafecção, um contágio da imunidade/indiferença. Trata-se da descoberta de que crer dói, e fazer igreja dói mais ainda. A presença de Deus é imediatamente dolorosa, e então os novos pastores imediatamente determinam que ninguém seja obrigado a crer, muito menos em comunhão, e manifestam-se eles mesmos descrentes (de um modo elíptico, naturalmente). Emergem sociabilidades não comunais, em forma de grafo complexo [danah boyd - https://teamhuman.fm/episodes/ep-102-danah-boyd/ ] – não mais estrela. O ideal da sinceridade é substituído por uma lógica da contiguidade. Ao invés dos signos de realidade (das palavras de ordem), a anti-palavra, o comando.

É em favor desse tipo de laço multidimensional que se produz uma pedagogia do dissenso organizado, da dispersão coreografada, contra a qual nenhum império do sentido tem resposta. Acontece que com os contra-gêneros já era assim, já era como grafo que se possibilitavam. Quando se manifestam como “movimentos sociais”, entretanto, esses contra-gêneros se enlaçam regressivamente aos escombros do império do sentido, tornam-se niilistas, conservadores, amantes dos dispositivos de controle, das hierarquias, com as quais estabelecem muito facilmente um pacto de governabilidade, em torno do que “é possível no momento”. Quando essas minorias retornam aos agenciamentos de grafo – e sempre o fazem, porque é a sua posição de repouso – recuperam uma certa vitalidade, mas isso não quer dizer que estejam adaptados à expansão desse funcionamento nesses outros tempos, quer dizer, que possam competir com as tecnologias da desafecção. Qual é a possibilidade de que se adaptem? Passa ela pelo retorno à sua tolice, ao seu sintoma, ao seu descontrole. Passa pela tomada como referência de um presente contra-utópico, como horizonte infinito, da extinção do gênero humano. A extinção do Homem (seja como realidade, seja como concepção) como caminho que leva de volta à vontade coletiva de viver. Como algo que é o oposto, que se opõe à morte do homem. Foucault nos diz [https://youtu.be/Q2tR96SLsNw] que o Homem não nos preocupa há tanto tempo assim, que o humanismo é uma proposição do século XIX. Ora, se o desaparecimento de Deus nos condena à liberdade, o desaparecimento do Homem nos está trazendo uma ideia de necessidade, daquilo que é necessário. O Homem, como conceito, teria sido um paliativo, um substitutivo temporário. Donde conclui o filósofo que talvez o pensamento não se ocupe mais de dizer o que se deve fazer, uma vez que o necessário estará sempre imediatamente visível. O pensamento se ocuparia de pensar, apenas. Apesar das aparências, é de uma (re)descoberta da necessidade que nos ressentimos, não de uma falta de interdição, de um excesso de soltura.

Esse é o campo dos ecossistemas complexos, é de extinções, mutações e pressões evolutivas que se trata. É o caso de tomar a essas interações como protocolos de rede, não como conteúdos. A mensagem aliás, pouco importa. Virá a importar novamente? O que acontece na ausência dos conteúdos? Tudo o que um conteúdo precisa é de contexto. É de se esperar que em meio aos protocolos de rede estejam espaços vazios, nichos contextuais. Ali estarão os conteúdos, em estado de miséria, de não-tolice avara. Não haverá espaço para as grandes pirâmides de sentido – que eram mesmo pirâmides agora se vê: não se movem por força própria. O entendimento, não obstante, sempre soube ser também fabriqueta de pequenas máquinas potentíssimas, cujo projeto cabe, inteiro, em poucas palavras. Palavras-germe.

Para não parar, é preciso parar. Por medo de que o céu nos caia sobre a cabeça não se pára, mas também porque se desdenha, ou descrê, da potência de recriar da terra. Porque essa potência é insuportável.

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